O renascimento da luta!

Leia ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=hDMcH0kkvEI

"Eu só peço a Deus que a dor não me seja indiferente,
 Que a morte não me encontre um dia,
 Solitário sem ter feito o que eu queria..."

Hoje eu gostaria de escrever sobre o que nós, trabalhadores da saúde mental estamos vivendo nestes últimos dias. Creio que, mesmo os que não são ligados ao campo da saúde mental, devem estar cientes, mas não custa uma breve explanação:
O Sr. ministro da saúde acaba de nomear para a gestão nacional da saúde mental do Brasil um psiquiatra que foi o diretor do maior hospício da América Latina. Além disso, o Sr. Valencius Wurch já concedeu incontáveis entrevistas na década de 90 se colocando contrário à estratégia de tratamento de saúde mental na comunidade, sendo defensor das práticas asilares do hospício.
O que o manicômio subtrai do sujeito é justamente sua possibilidade de ser um sujeito, a sua subjetividade, o que há de mais singular em cada um de nós. No hospício não há flamenguistas, não há admiradores de arte, não há socialistas. O João, que gosta do café com leite mais escuro não tem lugar. Só há um tipo de café com leite, só há as mesmas paredes, não há pensamento político, não existe paixão por clube de futebol. Ninguém pode gostar de vestir amarelo, pois todas as roupas são de todos, e cada um veste o que algum profissional do hospício decidir. Ninguém pode usar cabelo black power, porque todos os cabelos são cortados da mesma maneira, seja você negro ou branco. Todas as singularidades são dissolvidas na massa institucional.
Não há saída para o hospício, por se tratar de local de privação da liberdade. Não há como melhorar um lugar que priva o sujeito de sua liberdade, pois esta principal característica do hospício já faz dele uma instituição total, como Erving Goffman definiu os manicômios, as prisões e os conventos.
Em meados da década de 80 do século passado, nosso país registrou uma das mais árduas e belas lutas populares em prol da transformação da assistência em saúde mental, até então centrada no hospício. Na década de 80, a psiquiatria no Brasil havia virado comércio, época apelidada de "indústria da loucura", eram quase cem mil leitos! Em 2002, após a aprovação da lei 10.216 da Reforma Psiquiátrica, esse número já havia caído pela metade. Mas, ainda hoje, temos no Brasil quase 26 mil leitos em hospitais psiquiátricos! Pagos com nosso dinheiro, pois estão vinculados ao Sistema Único de Saúde. Nós, enquanto sociedade civilizada, ainda pagamos para que 26 mil pessoas vivam em condições sub-humanas e subtraídas de seus direitos civis!
Você não precisa trabalhar na saúde mental e nem ser louco para lutar contra o formato manicomial dos hospitais psiquiátricos. Mas visite um hospício, veja como as pessoas são tratadas ali, e depois pense que o dinheiro do seu imposto paga por isso. E porque? Por causa de pessoas como o Sr. Valencius Wurch, que defendem que louco pode ter tratamento desumano, louco não tem direito. Nós, trabalhadores da saúde mental lutamos há 30 anos contra o modelo manicomial da psiquiatria. Nesses 30 anos, foram abertos mais de 2.200 serviços como os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que são instituições para o tratamento de saúde mental abertas, onde as pessoas podem ir, receber o melhor tratamento que lhe é indicado e retornar para casa.
Foram abertas, também, mais de 600 residências terapêuticas, que são casas no seio da comunidade, onde residem pessoas asiladas em hospitais psiquiátricos por décadas, e que não tem mais vínculos familiares. Pessoas vítimas da exclusão social causada pela lógica do manicômio, que não tem para onde voltar ao sair do hospício. Vocês sabem o que é isso? Sabem que em Barbacena/MG existiu um hospício onde morreram mais de 60 mil pessoas?! Pessoas como eu e você.
Eu e você podemos surtar a qualquer momento. Nenhuma teoria científica conseguiu depurar a causa da loucura para que pudéssemos nos precaver. Portanto, enquanto houver hospício, eu e você podemos estar lá. Sua filha, seu pai, sua esposa. Mas, o ideal seria que não pensássemos no medo de alguém que amamos ir parar num lugar desses. Bom seria se pudéssemos pensar nas pessoas que ali estão como sujeitos de direito. Se pudéssemos lutar pelo direito do outro com a mesma força que lutaríamos pelo nosso, ou por quem amamos...
Voltando à indicação de Valencius Wurch, a justificativa do ministro da saúde para tal nome ocupar o cargo mais alto da saúde mental do país é: 1. ele é pessoa de confiança do ministro; 2. razões de ordem técnica. O ministro alega que a saúde mental no país hoje é muito ideológica e pouco técnica. Porém, em uma breve consulta ao currículo de Valencius Wurch não encontramos um só artigo ou outra produção científica que valide seu nome como referência técnica da área. Em contrapartida, temos hoje no Brasil uma política de saúde mental que é resultado de 30 anos de avanço técnico neste campo. O que faz com que nossa política de saúde mental seja referência mundial. Tal avanço técnico se deve ao percurso de vários que certamente detém legitimidade técnica infinitamente superior que o Sr. Wurch para ocupar tal cargo.
O Sr Valencius Wurch não terá uma gestão legítima, pois os técnicos da saúde mental não validam sua nomeação, não confiam em seus intentos e não reconhecem valor técnico algum em seu nome.
A luta antimanicomial, maior força da reforma psiquiátrica nos idos anos 80, hoje renasce, e com forças renovadas. Hoje somos mais. Após 30 anos de reforma, temos um número de trabalhadores, de usuários e de familiares/amigos triplicado, quadruplicado! E convocamos a sociedade como um todo à nossa luta. A luta é nossa.
Há pouco tempo estava eu lecionando e ouvi um comentário de uma aluna que mencionava a reforma psiquiátrica como uma história, algo que havia ficado no passado. Ao que eu disse que a reforma psiquiátrica não era uma história, que deveríamos nos manter em construção e em luta contra as formas manicomiais que nos rodeiam sempre. Que a luta antimanicomial é diária, pois as formas de segregação retornam em ciclos, além de se travestirem cada época de uma forma.
Há poucas semanas, um colega de luta me disse algo que muito me entristeceu, ele disse: "olha, às vezes penso que a reforma acabou conosco, não há mais quem queira lutar por isso". Hoje, com a alma revigorada eu posso dizer a ele: felizmente você estava enganado. Estamos aí! Nas ruas, nos CAPS, nas portas das assembleias legislativas, no facebook e no twitter. Estamos ocupando a coordenação de saúde mental em Brasília e resistindo. A luta antimanicomial renasce!

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