Cássia

Quando eu tinha vinte anos morreu a Cássia Eller. Era próximo do réveillon, mas foi o ano do 11/9, o mundo havia mudado de alguma forma. Então, muitas pessoas estavam tentando entrar no clima de final de ano, juntando forças. O clima tava esquisito. Estava dirigindo e a rádio anunciou que Cássia havia morrido. Ela simplesmente morreu sem estar doente. E Cássia era diferente pra mim, apesar de nem ser fã. Era diferente porque vi Cássia começar a cantar. Ela era uma moça da voz porreta e um comportamento exótico. Ela era como uma colega do ensino médio. Eu vi Cássia aparecer e vi Cássia morrer. Diferente de ídolos como Cazuza e Renato Russo que eu também vi partir, mas eles eram distantes, ídolos mesmo. Cássia morreu de overdose de cocaína, embora à época a família tenha tentado tanto provar outra coisa (nem sei porque, pra que). Vários amigos meus também usavam e eu pensei pela primeira vez que vida mata. É um pensamento estranho esse, traumático quando chega pela primeira vez. Porque com vinte anos a gente não sabe o que é a vida, muito menos o que é a morte. Muito menos que nossas ações podem nos matar. É a própria vida que vai nos ensinando, às vezes da pior maneira, que precisamos ter cuidado. Mas, aí começa um dilema que acompanha muitas pessoas: viver sem riscos é viver? O contato com germes e bactérias não faz nosso corpo criar anticorpos para combater germes e bactérias? Uma vida asséptica ainda assim é vida? Cássia, Renato e Cazuza foram de encontro a vida, e ela os atingiu em cheio! Difícil meio termo esse. E o dilema nos assola durante alguns anos... esses anos próximos aos trinta e que vai até não sei que idade (posso contar depois). Mas, por observar as pessoas, penso que em algum momento entramos num processo de resignação e jogamos a toalha. E aí entramos no movimento que Raul Seixas descreve em “Ouro de tolo”: sentados num apartamento com a boca escancarada cheia de dentes...
A vida é uma coisa curiosa, sou admiradora atenta e reflexiva. Podemos pensar que essa vida não vale nada porque a cada 4 segundos uma pessoa morre de fome. Vocês já sentiram fome alguma vez? Já imaginaram o que é morrer de fome no sentido literal? Então, essa vida não vale nada porque há seres humanos que permitem, e inclusive se beneficiam, do fato de uma pessoa morrer de fome a cada quatro segundos no mundo.
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Mas, ao mesmo tempo, podemos nos apaixonar pelo sorriso de uma criança, vivenciar o espanto delas ao ver o mar pela primeira vez e nos espantar também, de novo, mesmo sendo já velhos de mar... vocês já viram o sol se por no mar?
E a vida nos deu Beethoven. Não dá para passar incólume por ele. E também nos deu Martin Luther King, Malcom X, Betinho, Marighella, Mandela, John Lennon, Vinícius de Moraes, José Saramago, Cássia Eller...
Quando nasce uma planta no meio do concreto, quando um cão faz festa quando a gente chega, quando a brisa chega ao nosso rosto na beira do mar, quando a Elis Regina canta “Arrastão” ou quando vemos alguém que amamos depois de muito tempo.
Muitas pessoas chamam isso de beleza, e concluem, portanto, que a vida é bela. É um difícil dilema, não sei se a vida é realmente bela. Não sei se concordo com Gonzaguinha e fico com a pureza da resposta das crianças, mas entendo ele. A pureza da resposta daqueles que ainda não sabem que uma pessoa morre de fome a cada 4 segundos no mundo é realmente muito melhor que a nossa. Nossa resposta sobre o que é a vida é crua demais, cruel. Porque sabemos um pouco sobre isso. Melhor não saber.

Enfim, isso é tudo que eu tenho a dizer sobre isso.

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