Hoje quando conversamos foi tão bom. Já fazia tanto tempo que não te via. Seu cheiro, que eu sentia tanta saudade, estava tão bom que eu até pensei que tudo estava bem. Mas, não está. Nunca mais estará. O mundo se tornou um lugar onde é difícil respirar. Cheguei a te perguntar se sempre foi assim. Sendo você alguém de muita experiência de vida, esperava que me desse algum conselho, um restinho de esperança. Você me disse que o mundo é sempre o mesmo e nunca o mesmo. Assim como as suas ondas magníficas que vêm e vão e que parecem, a qualquer desavisado, uma mesma coisa em todos os lugares do mundo. Mas, jamais são. Tantas histórias feitas nas beiras dos rios que desaguam em ti, fazem com que suas ondas sejam sempre outras. O seu verde hoje, para mim, foi de uma imensidão que nossa conversa me fez chorar e entender algo que eu sempre disse meio sem saber o que estava dizendo: a vida é pra hoje. Tem esse algo que a gente custa muito a entender e sofre demais para digerir e conseguir continuar. A vida não tem sentido. Nada tem sentido. Nós últimos meses, muitas vezes penso sobre o que eu pensava há 20 anos. Nunca me lembro. Será que, em algum momento aos 19 eu pensei o que estaria vivendo aos 39? Não lembro. Mas, tenho certeza absoluta que em nenhum cenário apareceria pandemia e fascismo. Que loucura isso. Esses dias li o Caio Fernando Abreu e ele falava sobre o início da Aids. Fiquei pensando no que os jovens gays dos anos 80 viveram. Imaginem uma pandemia que, em seu início, atingia majoritariamente homens gays e o mundo político durante anos esteve em um silêncio sepulcral a respeito? Era ver suas pessoas mais próximas morrendo e ter esse sentimento de asfixia compulsória. Os governantes só começaram a falar sobre a Aids após muitas mortes e muita luta de ativistas gays. Cada vez mais me interesso pela geração dos anos 80. Quanta libertação, quanta luta por nós... Eu nasci no início da década de 80, devo tanto a essas pessoas que me sinto na obrigação de, mesmo a duras penas, deixar algo para as próximas gerações também. Não sei bem o que ou como. Nosso mundo hoje é outro. Nós temos tanto a nós distrair, a nos proteger do que carregamos dentro de nós. Acho que o mundo imagético em que vivemos nos protege muito de nossa subjetividade e da angústia que carregamos. É um mundo todo pronto, dado a priori. Um mundo onde não precisamos lançar mão de nossa imaginação e quando lançamos mão da imaginação, muito de nós está ali e passamos a ter contato com isso que é bênção e maldição. Passamos do mundo das ideias de Platão para o mundo das imagens das redes. E, nesse mundo, todo mundo pode ser o que quiser e ninguém é absolutamente nada. Pouco da singularidade aparece nessa massa homogênea que o capital nos transforma. E isso é devastador porque a vida em algum momento de descuido aparece na sua versão Real lacaniano. E, quando isso acontece, temos muito poucas ferramentas pra gerenciar a nós mesmos. E aí já sabemos a solução, a psiquiatria e a psicologia com suas estratégias que também são homogeneizantes.
Mas, lá estava eu, de máscara e óculos de proteção. Quase ninguém na praia. Fui caminhando com medo de sentar pra conversar contigo, viver tá perigoso ultimamente. Desejei seu abraço mas temendo me afastei. Fui andando, assim despretensiosamente, vez ou outra deixava que suas ondas me tocassem os pés. Até que você me deu uma lapada daquelas! Perdi um chinelo, fui atrás dele, perdi o outro, fui atrás do outro, quase perdi os óculos. Por fim, entendi. Era você falando "calma, minha filha, só te sacudi para você lembrar do que é importante". Era você me pedindo para sentar e escutar um pouco. Então, com as pernas e um pouco da bunda molhada, sentei e passei a escutar com a admiração de quem ouve um irmão mais velho cheio de estórias. Me lembrei do Ailton Krenak dizendo que nossa única saída é voltarmos as nossas raízes, nos reconhecer parte desse todo, onde até a morte (e inclusive ela) se torna parte, uma das parte do percurso. Eu sou tanta coisa, eu deixo de ser. O que vai ficar? O que sempre fica é o hoje. Um hoje que só é possível a partir do ontem, mas que continua amanhã, se não em mim, em tantos outros que também, de certa forma, são eu. O meu hoje foi libertador porque pude aprender contigo. Obrigada meu irmão.
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